sábado, 19 de novembro de 2011

"Felisburgo é a negação do triste, sem ser a explosão do alegre a todo pano; será o grato equilíbrio, o ponto de enlace das possibilidades amáveis de existir e coexistir" - Carlos Drummond de Andrade


O clube da ilusão em Felisburgo

Carlos Drummond de Andrade
(Os Dias Lindos)

Enjoado de viver o de sempre, desdobrei o mapa de Minas Gerais, esse país dentro do país, na esperança de achar uma cidade que fosse a cidade. Não uma qualquer entre milhares, mas aquela onde tudo fosse calme, luxe, volupté, entendo-se como luxo o contrário de ostentação e fausto. A acepção quatro do Aurélio: “viço, vigor, esplendor”. Isso eu queria.
Não há tal cidade no mundo, ponderou-me a Experiência Madura, cozinheira que mantenho a meu serviço desde priscas eras e nunca me falseou o tempero. Ela diz, ela sabe. Quis contrariá-la: Minas é tão grande! Mina maior do que Minas. Jazida a explorar sempre. Pode ser que eu lá encontre o desejado. Pode ser. Há de ser.
O dedo sobre Pouso alegre e Monte Alegre, hesitante. A imaginação circunvoa Pedra Azul, que se alça em paisagem, azul debaixo de azul. Águas Formosas? Campo Florido? Boa Esperança? Maravilhas parece-me duvidoso. Preferimos o óbvio: Felisburgo, no médio Jequitinhonha, me detenho.
Esta é a cidade, exclamei. Tão evidente, que se faz proclamar por sua condição, natureza e destino. Cidade que se fundou para exercer a felicidade. Está me chamando. Para lá eu vou.
Felisburgo há de ser diferente, e nem preciso requerer certo modo de ser feliz, que se componha com as minhas preferências. Por felicidade, entenda-se o que varia de indivíduo a indivíduo, mantendo a tônica: a elevação do ser à pura essência, pela ruptura com o circunstancial, o enfadonho, o mesquinho, o malicioso, o perverso – tantos males que envolvem o precário bem entrevisto no cotidiano. Luxe, calme...
Felisburgo é a negação do triste, sem ser a explosão do alegre a todo pano; será o grato equilíbrio, o ponto de enlace das possibilidades amáveis de existir e coexistir, e que nunca se plasmam num todo coerente: ora falta uma, ora outra, ou são várias ou muitas que escasseiam, e nada pode o homem se a mínima coisa desfaz a composição das coisas máximas. Estas, por sua vez, mantêm-se distantes umas das outras, de sorte que ser feliz é ser quase, ou pouco, ou sentir apenas que se poderia ser feliz, se uma ordem, uma arquitetura, uma matemática unisse todos os imponderáveis que geram o estado de felicidade. Calme, volupté...
Zapt! Corro à agência de turismo, compro passagem, desço, para ficar, feliz, em Felisburgo. Aparentemente, é só uma pequena cidade, e não poderia ser de outro modo, que de megalópoles e candidatas a megalópoles estou fugindo. Noto ajuntamento diante de uma parede. Na parede o edital. No edital, isto:
“Tendo em vista a assembleia geral extraordinária do Ilusão Clube de Felisburgo, que deliberou a sua dissolução e venda, em concorrência ou leilão público, do seu patrimônio, composto de prédio, mesas, cadeiras, geladeira, motor, refrigerador, a realizar-se no dia 28 de janeiro de 1.976, às 13 horas, etc...
(assinado) Jair Pinto Coelho, presidente da comissão.
Ó tempo, ó palavras. Em Felisburgo, numa hora de escassa inspiração, fundou-se um clube inacreditável, em que os sócios se reuniam para se iludirem pensando que estavam morando em Felisburgo. Quando realmente estavam. Eles não sabiam. Apelaram para a ilusão. Não viam, não repararam, não se capacitaram da realidade que é Felisburgo. Tentaram inventar outra, um clube, uma casa cheia de cadeiras – para que cadeiras? Com motor – motor para quê? Até geladeira eles puseram lá. Claro que a felicidade não é um clube nem reside em geladeira, coisas indiferentes em si, sendo que o clube nem sempre é indiferente: pode ser o meio de fugir de casa ou de si mesmo.
Abanei a cabeça, decepcionado. Prefigurei o leilão, as ilusórias cadeiras, o motor ilusionante, arrematados a preço de banana, e os sócios do clube, borocoxôs, assistindo à derradeira etapa da desilusão que eles criaram por sua insensatez. Não disse: bem feito, porque não vou gozar a tristeza dos outros. Mas achei natural que o clube e suas ilusões fossem leiloados. Felisburgo merece ser mais do que um clube de utopia. Ou vale o nome que tem, ou não vale nada.
Não há por aí, no mapa de Minas ou algures, uma cidade, um povoado, um palmo abençoado de terra, onde se realize o projeto de Baudelaire: luxe, calme, volupté? (não, evidentemente, o edifício que lhe arrebatou o nome. Pobre Charles: se voltasse, não terias acesso à portaria.)

PARTE ALTA DA AVENIDA BRASIL - FELISBURGO-MG - ATUAL


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